As contrações do Mar Morto
Meio
O barco estava parado, parecia guardado em uma gaveta, em meio à imensidão azul. A lua parecia se oferecer ao espetáculo, dourada, pura incandescência. O céu todo parecia ultrapassar a janela entreaberta. Pouquíssimas estrelas, mas suficientes para complementar o brilho outrora realçado pela tão serena e cordial presença da rainha da noite. O barco se movimentava e se ordenava ao encontro de uma pequena ilha. Era apenas uma viagem que precisava ser muito bem guiada, por mais simples que seu trajeto aparentasse ser. Não havia trajetória definida. A bela e misteriosa ilha recebia bem o vento que consigo trazia o barco e, paulatinamente, erguia, quase que na velocidade de um leve arrepio, as poucas e curtas folhas de seus dois únicos coqueiros. Coqueiros muito peculiares, com cocos que não possuíam nenhum líquido em seu interior, como os cocos comuns, de outras ilhas também comuns. Peculiar na forma e na cor: os coqueiros eram marrons. Pequenos e marrons. Uma graça. A aproximação mantivera os coqueiros em constante movimento. Inesperadamente, o barco bateu em um dos coqueiros, que parecia sequer reclamar do acidente e, visualmente, deixava-se levar pelo brusco contato. Era uma noite fria que aquecia a cena... A mistura das sensações se misturava também com o calor do atrito. Pensemos que a natureza também responde aos estímulos que a ela são ofertados e que seus elementos, não raras vezes, se ocupam em permutar. Mas a cena seguia com um abrupto temporal que lançava o barco para uma gigante e inesperada confusão de águas. Literalmente, um buraco no mar, formado instantaneamente por uma tempestade típica de Julho, para o sem tamanho Mar Morto. O inacreditável se fez quando, em uma sintonia não menos comparável com a de uma orquestra sinfônica, a fúria das águas e a rigidez dos movimentos da embarcação se entrelaçaram e pareciam lutar em comum acordo. Uma luta sem armas e sem ataques, como se o embate fosse desejado, mas a vitória perante o outro não. Parecia um confronto bélico. Dois aspirantes a herói, um único objetivo: sobreviver. Sim, sobreviver. As águas também sofriam com a fúria da tempestade, e o barco precisava seguir seu destino, por mais que ele ainda seguisse indefinido. Recuo.
A tempestade resolveu dar trégua, o barco resistiu ao furor do mar, e a lua contribuiu mais uma vez com seu brilho, dando, finalmente, um ar de mudança, de controle, de apaziguamento.
Obstinação. Em um dado momento, a trajetória, até então desgovernada do barco perdido no meio da imensidão, retomou seu prumo e seu único, ainda que real objetivo, ao longo de sua jornada passou a ser: atravessar o Mar Morto, com a condição de realizá-lo com vida.
Missão.Em alguns dias, a trajetória já se via quase completada. Já se avistavam as inclinações das planícies. A paisagem era mais completa e prazerosa. Não há o que se discutir sobre a beleza de uma lua cheia em meio a um céu quase sem estrelas, mas não há como se comparar a satisfação do dever cumprido, da chegada ao destino, do se ver no topo, mesmo que o topo esteja um pouco distante dos tão lindos, e agora distantes, coqueiros.
Chegada.O barco, embora com aspecto cansado, mas com a relutante rigidez de outrora, ao avistar o balançar da vasta vegetação e ao lembrar do quanto isso o fazia bem, avançava, com uma vontade já incontrolável, com uma constância invejável em seus movimentos, com uma destreza tão louvável quanto seu ímpeto, enaltecido pelo enorme desejo de sentir-se agraciado com a satisfação da missão cumprida.
Separação. A chegada foi arrebatadora. O contato com a esfera continental foi, de longe, agraciada também pela distante, mas sempre rememorada ilha dos coqueiros marrons. Chegava-se ao outro lado do gigante das águas, com uma única lembrança...
O ponto de partida, o começo que não teve início, a sede de chegar ao fim do que não precisa findar... o barco se doou, menos rijo, às areias límpidas e acolhedoras do então novo lar.
Ao longe, as lágrimas que caiam da ilha dos coqueiros marrons foram, junto com o barco e sua conquista, os maiores responsáveis pelas contrações do Mar Morto naquela fria e bonita noite de Julho...