sábado, 14 de agosto de 2010




As contrações do Mar Morto


Meio
O barco estava parado, parecia guardado em uma gaveta, em meio à imensidão azul. A lua parecia se oferecer ao espetáculo, dourada, pura incandescência. O céu todo parecia ultrapassar a janela entreaberta. Pouquíssimas estrelas, mas suficientes para complementar o brilho outrora realçado pela tão serena e cordial presença da rainha da noite. O barco se movimentava e se ordenava ao encontro de uma pequena ilha. Era apenas uma viagem que precisava ser muito bem guiada, por mais simples que seu trajeto aparentasse ser. Não havia trajetória definida. A bela e misteriosa ilha recebia bem o vento que consigo trazia o barco e, paulatinamente, erguia, quase que na velocidade de um leve arrepio, as poucas e curtas folhas de seus dois únicos coqueiros. Coqueiros muito peculiares, com cocos que não possuíam nenhum líquido em seu interior, como os cocos comuns, de outras ilhas também comuns. Peculiar na forma e na cor: os coqueiros eram marrons. Pequenos e marrons. Uma graça.  A aproximação mantivera os coqueiros em constante movimento. Inesperadamente, o barco bateu em um dos coqueiros, que parecia sequer reclamar do acidente e, visualmente, deixava-se levar pelo brusco contato. Era uma noite fria que aquecia a cena... A mistura das sensações se misturava também com o calor do atrito. Pensemos que a natureza também responde aos estímulos que a ela são ofertados e que seus elementos, não raras vezes, se ocupam em permutar. Mas a cena seguia com um abrupto temporal que lançava o barco para uma gigante e inesperada confusão de águas. Literalmente, um buraco no mar, formado instantaneamente por uma tempestade típica de Julho, para o sem tamanho Mar Morto. O inacreditável se fez quando, em uma sintonia não menos comparável com a de uma orquestra sinfônica, a fúria das águas e a rigidez dos movimentos da embarcação se entrelaçaram e pareciam lutar em comum acordo. Uma luta sem armas e sem ataques, como se o embate fosse desejado, mas a vitória perante o outro não. Parecia um confronto bélico. Dois aspirantes a herói, um único objetivo: sobreviver. Sim, sobreviver. As águas também sofriam com a fúria da tempestade, e o barco precisava seguir seu destino, por mais que ele ainda seguisse indefinido. Recuo.
A tempestade resolveu dar trégua, o barco resistiu ao furor do mar, e a lua contribuiu mais uma vez com seu brilho, dando, finalmente, um ar de mudança, de controle, de apaziguamento.
Obstinação. Em um dado momento, a trajetória, até então desgovernada do barco perdido no meio da imensidão, retomou seu prumo e seu único, ainda que real objetivo, ao longo de sua jornada passou a ser: atravessar o Mar Morto, com a condição de realizá-lo com vida.
Missão.Em alguns dias, a trajetória já se via quase completada. Já se avistavam as inclinações das planícies. A paisagem era mais completa e prazerosa. Não há o que se discutir sobre a beleza de uma lua cheia em meio a um céu quase sem estrelas, mas não há como se comparar a satisfação do dever cumprido, da chegada ao destino, do se ver no topo, mesmo que o topo esteja um pouco distante dos tão lindos, e agora distantes, coqueiros.
Chegada.O barco, embora com aspecto cansado, mas com a relutante rigidez de outrora, ao avistar o balançar da vasta vegetação e ao lembrar do quanto isso o fazia bem, avançava, com uma vontade já incontrolável, com uma constância invejável em seus movimentos, com uma destreza tão louvável quanto seu ímpeto, enaltecido pelo enorme desejo de sentir-se agraciado com a satisfação da missão cumprida.
Separação. A chegada foi arrebatadora. O contato com a esfera continental foi, de longe, agraciada também pela distante, mas sempre rememorada ilha dos coqueiros marrons. Chegava-se ao outro lado do gigante das águas, com uma única lembrança...
O ponto de partida, o começo que não teve início, a sede de chegar ao fim do que não precisa findar... o barco se doou, menos rijo, às areias límpidas e acolhedoras do então novo lar.
Ao longe, as lágrimas que caiam da ilha dos coqueiros marrons foram, junto com o barco e sua conquista, os maiores responsáveis pelas contrações do Mar Morto naquela fria e bonita noite de Julho...
Contradança

Com a força dos leves passos, com a limpidez do suor
O ritmo ganhou espaço, a matidez perdeu a voz.
O agito dos movimentos perpassa qualquer Cadência
 A mistura de sentimentos dá o Tom, a essência.

No palco se fez quadrilha, com negro, batuque e tambor
Compasso de uma só trilha, mistura de raça e calor.
O tango defende o salto, o samba no pé se arrebenta
Seja branco, negro ou mulato, na Dança até a dor se contenta.

A Letra da Melodia se faz em alto e bom som,
Nem a alma desafia o que a vida transforma em dom.
Não há uma regra, nem mesmo um lugar,
A Dança é o reflexo, é o toque, é voar...

Pode ser fácil, difícil ou desastroso.
Mas tem de ser táctil, sonoro ... gostoso!
Não é para idoso, adulto ou criança.
É deixar-se levar pelo passo da Contradança...



Batatas


"Ao vencedor as batatas, ao vendedor a clientela, à clientela, a escolha: as batatas ou as cascas?" 
“Até na hierarquia dos fracos há uma força que os sustenta”
O (S)entido(s)


[...]
E, assim, sem sentido,
Mal começa.
Acaba.
Os sentidos, quando agem em comunhão, massacram os outros.
Os outros, sim. Outrossim, os sentidos, as pessoas e os dois.
A sensação de sem-ação é sempre ação... Sempre. Só.
Se sentimos, subtemo-nos. Se fazemos, sentimo-nos. É quase lógico. Quase.
Só não é logicíssimo. Não suporto esses íssimos sem sentido...
É desconfortável saber que somos sempre os seres que sofrem ou sentem
As mais sedentas, suaves, sonoras e sussurrantes sensações... Sim, somos nós, os seres...
Os significados? Ou seriam os significantes? Isso só mesmo Saussure sabe. Ou saberia...
Aliás, aliás, ali hás de sucumbir aos suspiros e surpresas do secreto e sutil sabor da dúvida.
Ou supões que a sabedoria surge da sempre certa sobriedade?!...
Supões que ela não é suspeita de sinais?!E que esses sinais podem ser o seu próprio som, o seu silencioso som?!...
Ledo e seu, o engano.
O sábio um dia já havia dito: inteligência e sabedoria são muito diferentes. Infelizmente, os inteligentes não sentem e não sabem qual a diferença. Mas, seguem sendo inteligentes...
Acham-se semelhantes. Sentem-se até superiores...
Mal sabem que somos todos suspeitos – sábios e inteligentes. Somos todos significados e significantes. Ressignificados e insignificantes...
Só precisei de alguns sons para saudar mais uma dúvida.
Saudar.
Não saldar, nem sanar...
Saudar...
Até porque seria insano dizer que sanei o que você, eu, nós, juntos e a sós, mal conseguiríamos significar: o(s) sentido(s). Das coisas, dos seres, do ser, o não ser, o meu, o seu, o da inteligência, o da sabedoria, o dos outros, o dos sons, das reticências...
Mal acaba.
Recomeça.
[...]
Um sabonete, um amor

Se não fosse pelo sorriso radiante,
Se não fosse pelo cheiro de homem,
A dúvida teria durado menos tempo,
A paixão não.
Se não fosse pelo pouco tempo,
Se não fosse pelos raros encontros,
A intensidade não seria a mesma,
A troca seria inequívoca.
Se a lembrança não ficasse solta,
Se o nome não tivesse lógica,
A distância seria inválida,
Seu valor seria pura simbologia.
Um amor, uma paixão e um banho
Podem ser todos lentos, longos, tristes
Loucos, doces, certos, bons,
Perfumados, chamativos, humildes,
Secos, molhados e gostosos.
O amor tem seu perfume próprio,
A paixão oscila entre o aroma de ambas as partes,
O sabonete escorrega...
É só uma lembrança, em mais uma madrugada perfumada,
Em mais um corpo sem suor.

Hetero sapiens


A ciência procura respostas,
Mas diz que lança questionamentos.
A religião não deixa dúvidas, mas traz muitas explicações.
O homem sabe que é homem mesmo sendo homo.
Chegou o tempo em que ser hetero sapiens pode ser a saída tanto para os que têm muitas dúvidas, como para os que se recusam a aceitar-se como um ser em constante mutação.